domingo, 28 de novembro de 2010

Boa Viagem!




Quem compraria bilhetes para uma jornada árdua e insípida com incessantes escalas de contas a pagar, de compromissos a cumprir e de estratégias complexas para a sobrevivência?

Eu não compraria e meu não seria enfático. Isso me soa mais sacrificante de que uma peregrinação religiosa sem promessa de salvação ao fim.

E se o marketing prometesse prazeres, sonhos de consumo, realizações de desejos, contemplações estéticas, glórias e outras satisfações do ego?

Então eu pensaria mais um pouco, afinal sou sensível às tentações como qualquer ser humano.

_Tem amor nessa viagem? Perguntaria depois de contemplar os últimos itens com os olhos brilhando de contentamento antecipado, mas desconfiada de uma ausência essencial.

Diante da resposta negativa, recuaria. Eu não suportaria o tédio salpicado de prazer. A vida sem amor não faz sentido. Não me interessa uma viagem longa sem afeto ao começo, ao meio, ao fim.

_ A vontade amorosa permeia toda a viagem! Eis a resposta que me convence. Assim, embarco e recomendo a viagem. Pois a vida nasce do encontro de tais vontades e nelas se sustenta, ainda que sejam expressões de outras pulsões, como quis aquele senhor genial por quem nutro enorme admiração, simpatia e uma dose conveniente de reserva.





Imagem:MULHER COM A MALA DE VIAGEM.
© Mycoolsite... | Dreamstime.com

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sara.



Era boa, Sara, a que a ninguém faltava. Sempre pronta para o acolhimento, a conciliação, o abraço.
Ouvia sempre os que suas angustias lhe falava. Respondia com cuidadoso afago.
Andava pela vida com receio de pisar pé desavisado. Em muitas ocasiões não dava um passo.
Tinha espírito independente, contudo, e ímpeto para crescer, pronunciando-se sobre tudo o que a afligia.
Deu-se o colapso quando percebeu que sua opinião incomodava, suas paixões assombravam, sua ética insultava, seu "não" desagradava e suas verdades eram questionáveis.
Deitou-se em silêncio: Não mais falava, não mais cumprimentava, não mais sorria, não mais abraçava, nem mesmo chorava.
Despertou ao compreender que a vida também acontece quando sua fala esbarra em outras falas, embora seja mais prazeroso viver nas vezes em que o encontro de vozes ocorre. Entendeu que o não e o sim podem conviver e que as verdades dão lugar a outras verdades.
Acredita que as paixões são para os fortes e conclui que continua sendo boa, enquanto toma um café e espera para ver o que fundo da xícara lhe reserva.

Mais Um.

Na mente
Neurônios frenéticos
Buscam temperança.

domingo, 14 de novembro de 2010

Drops.



No céu
Brilham incertas
As estrelas de ontem

****

Na pele
Esfria e esquenta
Do amor, a memória.

****

Na boca
É de hortelã
O sabor da esperança.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Delirei?


Os desconfortos causados por uma gripe me lembram Drummond. O poeta falou sobre essa chatice em uma crônica que li há muito tempo. Só mesmo Drummond para transformar coriza, mal-estar, tosse e febre em algo inesquecível.
Recordo mesmo que li esse texto na casa de Ponta Negra, quando ainda era praia de veraneio e não um bairro ao fim da Via Costeira.
Não estou diminuindo Ponta Negra. Longe de mim tal feito. É impossível reduzi-la. Estão fazendo uma campanha para que os natalenses voltem a frequentá-la, pois hoje é mais visitada por turistas. Na semana passada prendi a respiração como sempre ao chegar lá.
Continua linda, mas não é a mesma da minha infância. Também eu não sou a mesma. Ponta Negra se transformou lá e eu cá. Muitos sonhos ficaram entre suas areias e as águas mornas daquele mar. Muitos vieram depois. Alguns realizei em outras costas. Uns ainda resistem.
Há um caminho diverso para chegar a Ponta Negra e nele vejo os Ipês. Eu adoro Ipês. Nessa época do ano eles florescem em amarelo, roxo, branco e rosa. Escapam sobre os muros e eu me encanto. Transgridem lindamente e meus olhos festejam suas cores.
Lacrimejo. É a gripe que insiste em se fazer presente quando eu tento fugir dela escrevendo sobre coisas que gosto. Minha cabeça pesa. Preciso ficar boa logo. A culpa é do clima.
Minha filha me fala em um Buganville. Buganville não é Ipê? Não sei, mas parece ser. Em Lisboa tem Jacarandá. Na praia da Pipa têm Ipês. São lindos. Os caules são diferentes, mas as flores são iguais. Ou quase. Sou péssima em botânica. Podem falar. Vou perguntar a minha mãe ou a tia Socorro, que tem um jardim lindo. Elas entendem de plantas. Eu só entendo de sonhos.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Autoconhecimento.


Conheço-me quando percebo que não me conheço tanto assim, quando me descubro em um novo estado ou quando avalio de outra forma o passado.
Conheço-me quando autentico gestos ousados ou quando já não me identifico com passos dados, nem com versos nos quais não vejo graça ou nexo.
Conheço-me na penitência dos erros de ontem, na esperança do amanhã e na aceitação de hoje.
Continuo o autoconhecimento quando me abraço inteira: pétala e espinho.
Conheço-me na perturbação que me assalta ao descobrir que a vida a pele afaga, mas também a carne rasga.
Conheço-me quando me assusto pela distância percorrida e quando me canso antes da partida.
Conheço-me quando a minha face contrai-se diante de outra vontade tão legítima quanto a minha.
Conheço-me quando tento entender a realidade sem perder de vista a fé que me sustenta.
Conheço-me quando descubro em mim razão e era tão mais fácil acreditar ser apenas emoção.
Conheço-me quando me refaço a cada dia, integrando uma informação nova ou alcançando um ponto de vista diferente.
Por fim, conheço-me quando me rendo a um carinho, quando namoro o mar, quando cultivo uma flor e, principalmente, quando sei que o processo não termina aqui.