sábado, 30 de maio de 2009

Milagre?


Meus dons,
Quanto mais vos oferto
Mais se multiplicam.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Casa de Poeta.


Amanhecia constantemente na casa da poetisa. Alaranjado brilhante, para ser mais exata, foi a cor da casa de Adélia Prado, durante muito tempo, conforme o poema.
Casa de poeta ou coisa de poeta?
Não importa. Importa a cor amanhecida e linda.
Não me sentiria confortável amanhecendo a toda hora. Minha casa seria azul celeste ao meio-dia. Quando a tarde caísse eu a pintaria de dourado e ficaria na frente admirada até me dar conta da noite que nunca falta e até se adianta nessa época do ano. Com minha falta de jeito pintaria estrelas destorcidas e uma lua nova no cantinho.
Casa colorida é para poetas do porte de Dona Adélia. A minha é revestida de pastilhas sem gracinha, mas bem prática para a manutenção diz o senhor síndico.
Ainda assim vejo a rua, carros, gente e árvores daqui. Se espichar a visão alcanço um rasgo do verde que cobre as dunas que me separam do mar.




Impressionista


Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Adélia Prado.

sábado, 23 de maio de 2009

Juntando Pedaços.


Aline não saberia dizer quantos anos tinha o vaso que jazia em vidros coloridos no chão.
Ela brigara com o decorador para mantê-lo em destaque na nova sala. Pouco importava que o seu vaso destoasse das peças modernas nas quais havia investido um bom dinheiro.
Não se joga fora lembranças por não combinarem com o novo estilo de vida. Repaginação tem limites, argumentara.
Aline, que jamais tratava mal as pessoas, agora esbravejava com o homem assustado que não entendia a intensidade daquela atitude.
No ímpeto ela correra quando vira uma mão aproximando-se do seu vaso e na confusão o derrubara.
Heitor, convidado de um amigo comum , apenas encontrara um bom lugar para guardar as chaves do seu carro e aquela louca havia se jogado contra ele esbarrando no objeto de gosto duvidoso que se desfez no chão.
Todos na sala olhavam espantados aquela a cena. A anfitriã sofisticada transformara-se em uma desvairada. O homem a quem ela se dirigia achava-se visivelmente ofendido.
Aline perdera o controle e a festa de inauguração do seu novo apartamento terminou ali.
Um grupo de convidados ainda levou qualquer coisa do farto bufê para continuar discutindo o surto de Aline em outro lugar.
Heitor foi o primeiro a sair. Ao chegar ao carro, no entanto, verificou que não estava com as chaves e tremeu ao pensar que teria que enfrentar a fera que o acuara.
Sem outra opção, àquela hora da madrugada, voltou ao apartamento de espírito armado contra qualquer ataque que provavelmente viria da dona da casa.
Encontrou a porta aberta e entrou. Todas as luzes estavam acesas e a música continuava tocando. Ainda havia comidas e bebidas espalhadas pela sala, mas nem um sinal de vida por ali.
Encaminhou-se para o local do incidente. Localizou as chaves perto do sofá e ao retornar sem querer chamar atenção, deparou-se com Aline sentada no tapete olhando os restos do vaso.
Não era mais a mulher segura, tampouco a tresloucada que ele viu sentada no chão. Mais parecia uma menina chorando sua boneca quebrada.
_ Desculpe-me. Esse vaso representava muito para mim. Disse Aline em voz fraca.
Contou-lhe que a peça tinha sido de sua bisavó e que desde então vinha passando a ornamentar a casa de todas as mulheres da família.
Heitor, surpreendido diante do novo quadro, compreendeu a relevância do objeto. Pensou que talvez fosse a única referência confortadora no mundo competitivo no qual Aline vivia e tentou confortá-la.
_ Quando estiver pronta poderei lhe ajudar a juntar os pedaços.
No começo da madrugada um homem e uma mulher, até pouco tempo desconhecidos, recolheram com peculiar intimidade os restos do vaso que testemunhara gerações.





Este texto faz parte do VI Desafio Recantista de 2009.

domingo, 17 de maio de 2009

Aprendendo a Viver.


Os pensamentos não param, enquanto finjo não ver o tempo passar. Há quase um empate entre a velocidade da mente e a do relógio.
Os dias encolhem e os sonhos concorrem por um lugar na noite. Acordo com um sonho interrompido na ponta da língua ou na varanda da alma.
As palavras brigam dentro de mim, enquanto tento mantê-las em harmonia aqui fora. Daí o enjôo. O embrulho no estômago é o desconforto de um espírito inquieto que busca a sabedoria na paz.
É fácil ceder ao impulso. Difícil é enfrentar as consequências do não pensar antes de agir. Mais dificil ainda é aprender a viver.
Não vale se fechar no castelo. Rapunzel, a mocinha de tranças do conto de fadas, não sobreviveria no século XXI. Ninguém mais usa tranças e os príncipes são espécie em extinção.
Claro que notei uma resquício de ingenuidade na última frase. Batalha quase perdida matar o romantismo em mim.
Deixem-me crer que ainda há cabeças coroadas e bons corações, mesmo que eles não sejam meus pares na dança da vida, fico bem por saber que existem e que farão alguém feliz.
Os ponteiros continuam a competir com meus pensamentos. Inspiro, prendo o ar e expiro devagar. Assim aprendi a controlar a ansiedade.
Preciso aprender mais. Não quero parar nunca o aprendizado, mas tenho que vivenciar uma lição por vez. Agora estou tentando liberar palavras.

sábado, 16 de maio de 2009

Destino Final


Alargam-se as margens
Na areia molhada
A cadência é natural
Ondas despudoradas
Murmúrio gutural
Força que adentra
Espumas que marcam
E realizam na praia
O destino final.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Pausa Para Subir.


Olhos no mar, pernas desgovernadas e coração na boca. Lembro da liberdade e da euforia que me acompanhavam morro abaixo na praia de minha infância.

Era a melhor hora do dia. Ao pé da duna a queda era previsível e a areia que me cobria o corpo inteiro ia embora nos mergulhos quase infindáveis que terminavam com o chamado insistente de minha mãe.

Haja esforço para subir o monte de areia escaldante, mas fazia parte da farra e eu chegava em casa com o apetite dobrado. Depois do banho para tirar o sal, desfrutava almoço e sobremesa sem contar calorias.

Hoje o morro do qual falo virou hotel onde a recepção é no andar de cima. Apartamentos, auditórios e área de lazer localizam-se nos pisos inferiores.

O mar continua no mesmo lugar, mas de certa forma aquela construção bonita dá-me a impressão de ver o mundo de cabeça para baixo.

O progresso mudou tudo por lá. O tempo agiu em mim. Todos os dias crescem degraus na minha praia e na minha vida.

Alguns, alcanço com o fôlego da menina de antes, outros me parecem íngremes demais para subir e ainda há aqueles não me inspiram segurança.

É preciso avançar. Daqui a pouco estarei um degrau acima, mas quero uma pausa aqui onde estou. Tomarei uma água de coco enquanto esqueço meus olhos no mar.

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Esse texto faz parte do 5º Desafio Recantista.

sábado, 9 de maio de 2009

Instinto de Mãe.


Instinto de Mãe.

Abril de 1986. A TV noticiava que os Estados Unidos haviam bombardeado a Líbia
Naquela noite surgia em mim um sentimento desconhecido até então. Eu tinha um bebê nos braços e o mundo corria risco. Não foi uma noite como as outras em que eu vinha treinando ser mãe e deixando a confortável posição de ser apenas filha.Experimentei uma nova ótica vinda do coração. Enquanto embalava Sylvinha, temia uma nova guerra mundial e pedia a Deus para que os líderes tão distantes de mim, não destruíssem o mundo no qual minha filha havia chegado recentemente.Pensei nas mães de Tripoli com empatia. Trouxe-as para perto de mim. Devo ter rezado por elas também.Em outra noite a terra tremeu no Rio Grande do Norte. Desci as escadas do edifício com roupa de dormir, carregando minha filha nos braços. Pulei da cama, corri para o quarto vizinho e saí. O pai e a babá vieram atrás com roupas, mamadeiras e chaves do carro. O destino foi a casa de minha mãe, onde nos abrigamos.Ambas as situações não abalaram a minha família. Mas, me fizeram compreender o que era ser mãe. Depois que somos mães, a natureza age em todas as espécies e passamos a ser leoas na proteção dos nossos filhos. Depois que temos filhos, nos aproximamos de nossas mães e dividimos as dores e glórias com outras mães. Ser pai também é um ato transformador, mas o dia de hoje é dedicado às mães e divido a festa com minha mãe, minha filha e as demais mães do mundo.


Para mamãe, tia Socorro,vovó Nana, vovó Élia, vovó Ritinha,toa Eliane, Mana, Melissa, Ângela, Lala, Cássia, Larissa, Luciana, Élia, Luluca, Ana Lídia, Verushcka, Janine, Neta, Leonor, Zélia, Laurita. Malu,Ana,Valéria, Sônia, Auta, Arlete, Dona Lurdes, Graça e muitas outras mães que admiro e amo.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Leite Derramado

" Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua orígem. Porquê ao nascer ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido á mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo mal fermenta".


É Leite Derramado, o novo romance de Chico Buarque de Holanda que nos leva pela história de amor centenária entre Eulálio e Matilde.

Amor, sensualidade, política, poder, crimes e o painel da sociedade brasileira ponteados com lirismo.

Situei a protagonista entre a Gabriela de Jorge Amado e a Capitu machadiana .Aliás, percebii uma forte referência à obra de Machado no livro. As ondas do mar de Copacabana, que parecem guiar-se pela respiração de Matilde, invadem a praia em noite fatídica.

Eulálio também traz um pouco de Bentinho, mas não a casmurrice, pois é com extrema doçura que cultua a lembrança da única muler que amou.

A despeito das resenhas que li e que me empurravam para longe do livro a narrativa de Leite Derramado e seus personagens seduziram-me desde as primeiras páginas.

Fui assim, de um fôlego só, do apogeu à decadência dos Assumpção, mas me detive no coração do narrador e foi o sabor doce que me ficou.




Evelyne Furtado, em 05 de maio de 2009.