segunda-feira, 30 de maio de 2011

Deslocamento.


Érica nasceu da imaginação de um escritor noir . Vivia em uma cidade cinza onde o sol era paisagem na parede. Deslizava entre ternos e olhares escuros, respirando segundo a vontade do criador.
Em muitas ocasiões o ar lhe faltava, em outras o tomava em golfadas. Páginas e páginas frenéticas davam lugar a lacunas decorrentes da falta de vontade do autor. A ansiedade a tomava em tais hiatos e para se acalmar fazia versos. Odes ao criador, resmungos impacientes, recados.
Em alguns momentos chegava a acreditar que tinha vida própria e saía por aí inventando figurino, mudando cor de cabelo, treinando novas atitudes. Mas de uma de uma hora para outra sentia que algo estava modificando seus passos.
O chamado do autor mudava outra vez a marcha e ela ganhava novos traços na personalidade, um olhar mais vago e missões inéditas ao fim das quais ganhava dias de bons sonhos e noites paradisíacas.
Imaginava-se contracenando com Humprey Bogart, pois era dada a ver romance através da fumaça.
Érica espargia tinta colorida nas linhas escritas por outras mãos deixando vestígios de seu sonho mais íntimo: ser a protagonista de uma comédia romântica.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Dúvidas.

Parece-me impossível a existência sem dúvidas. Existir com um mínimo de consciência de nós e do mundo ao nosso redor já nos faz refletir e na reflexão está implícita a dúvida.
A meu ver o ato de pensar atrai a dúvida. “Ser ou no ser, eis a questão". O Hamlet de Shakespeare resume magistralmente a dúvida como atribuição humana. Nossa tragédia ou nossa maior ventura. Marca de nossa condição de seres com capacidades intelectuais e espirituais.
Sou ou não sou? Quero ou não quero? Posso ou não posso? Devo ou não devo? Vou ou fico?

Todas essas questões trazem em si a dúvida e durante um dia em inúmeras oportunidades nos confrontam com ela. Da mais trivial àquela com significado maior.
Quanto mais vivemos e ampliamos nossos conhecimentos, mais ponderações fazemos. Em alguns momentos as dúvidas se multiplicam e paralisamos.
Talvez seja a hora de nos colocarmos por conta de Deus até as águas baixarem.
Então poderemos respirar fundo e começarmos a decidir aos poucos. Seguir um rumo, nem que seja para lá na frente questionarmos outra vez. Duvidar e crer. Crer e duvidar para outra vez acreditar faz parte da trajetória humana, mesmo quando não damos conta.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Teimosia.

Nunca selecionou o mal. Disso não há duvida.O que não significa que tenha feito as escolhas certas.
Sente saudade da época em que sabia o que queria, distinguia bem entre sonho e realidade, e , principalmente, não duvidava do ímpeto que a fazia avançar.
Mas o freio veio de súbito e a fez beijar o chão. Ao redor tudo girava e o mais desconfortável era a sensação de que algo lhe faltava.
Ao recuperar a consciência, se é que recuperou, não encontrou mais seus sonhos tais como eram. Todos , sem exceção, estavam contaminados de realidade.
Dizem que é salutar e que já veio tarde. Chamam, esse seu estado, de desencatamento. Ela não discorda, mas prefere chamar de crise. Pois crises são vencidas ao final.
Segue perseguindo a esperança e nutre-se dos restos de sonhos. Teimosamente, insiste que o melhor ainda virá.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Recriando.

O poeta não inventou a relva; ele deu cor e nova textura a ela. O céu, até onde sei, não é uma criação poética ; o poeta deu ao céu sentidos outros. Do mar que ora aproxima, ora afasta, digo o mesmo.
Nem a palavra, o poeta criou, o poeta a usa como bem ou não quer. O poeta não confeccionou cheiro, nem perfume de flor. O poeta não inventou o amor. Nem eu, nem eu, nem eu.
Ao poeta cabe transformar e não criar. Mesmo o texto rubricado como ficcional é baseada na vida ou na arte que a imita. Ninguém cria a partir do nada.
Poetas juntam fatos, vestem sentimentos, brincam com o passado e com o futuro. Poetas são empáticos. Colocam-se na pele de outras pessoas. Idealizam com fundamento em experiências anteriores. Lembram, sentem e projetam sentimentos. Reduzem ou amplificam algo experimentado ou observado.
Poetas desejam outra vez o já desejado e nunca o que não foi um dia aspirado. O poeta se diz fingidor de uma dor que deveras sente. O poeta confunde e, com as mais melhores intenções, mente. Mentiras sinceramente poéticas.