segunda-feira, 26 de julho de 2010

Mentira.


Algumas personagens desejam falar através de minhas palavras e para isso puxam a minha saia, pulam em minha frente, oferecem doces, choram e até esperneiam.

Sempre dei voz as que choram e as que esperneiam. Elas me comovem e cedo fácil às emoções, mas hoje não estou nessa sintonia.

Gosto das animadinhas, mas essas não precisam da catarse que faço quando escrevo. Tento explicar isso a elas, que insistem em aparecer. Como estou aprendendo a dizer não, aproveito para me exercitar e lhes dou nãos bem redondinhos, ainda com um tiquinho de culpa, mas com menos desconforto.

Mais além vejo uma mulher sentada de pernas cruzadas, com uma mão no queixo e o braço apoiado na coxa. A outra mão segura um livro que ela não parece ler. Esse detalhe não me escapa e põe em cheque a roupa certa e o ar blasé de quem não está nem aí diante daquele tumulto. Observo que os seus lábios apertados parecem aprisionar sentimentos e nesse esforço inconsciente ela força o maxilar esticando os músculos da face.

Pergunto se quer falar alguma coisa. Ela diz que não tem nada interessante para falar, mas sem dar uma pausa sequer, começa a falar do livro sério que está lendo, do cepticismo com o qual assistiu ao último filme de Vanessa Redgrave e que a música do seu momento é O Samba do Grande Amor de Chico.

Continua o discurso dizendo que hoje é uma mulher sem ilusões e que daqui para frente pensará a vida por esse prisma.

Dou-me por satisfeita e agora que as outras personagens parecem ter desistido de chamar a minha atenção, finalizo com a mesma palavra que encerra o samba de Chico e que dá título a esse texto.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A Chave.



É preciso fechar aquele ciclo com a devida ternura para abrandar o pesar, mas a impaciência com a dor causa-lhe, além do desconforto, uma ansiedade que lhe tira o foco impedindo-a de fechar o que tem que ser fechado.
Na bolsa repleta ela busca a chave. A procura é angustiante. As mãos tocam e soltam itens dispersos refletindo a desorganização interior.
Uma mão na realidade e outra na ilusão. Deixa cair a ilusão e sofre mais uma vez.
A percepção confusa dificulta o reconhecimento dos objetos. Misturados estão seus pertences; misturados estão seus sentimentos.
Confundem-se telefone celular com alegria, batons com tristezas, óculos com esperança, papeis de balas com desilusões.
Um bloco de anotações contém citações, letras, impressões de momentos e paginazinhas com enormes vazios.
Alguns desses vazios caem na sua saia. Com uma das mãos limpa o tecido e espalha um sentimento estranho no ar. Respira fundo para reconhecer o que sente. De repente a lembrança de uma voz guia sua mão e ela encontra a paz. Eis a chave. Fecha a porta e com um longo suspiro sai.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Para Eliza.


O assassinato de Elisa Samúdio é um soco no estômago, pois não é fácil olharmos a chaga aberta em nossa condição humana.
Somos capazes de tamanha perversão? Pergunto-me e fico estarrecida diante dos fatos até o momento apurados e que confirmam minha indagação.
Elisa, que parece ter estado em busca do amor, merece no mínimo descansar em paz e para que isso ocorra é preciso que seus algozes sejam julgados e condenados.
O caso é complexo e envolve muitos aspectos, mas de uma coisa tenho absoluta certeza: Nossa sociedade precisa com urgência rever valores.
Nesse momento não tenho o menor medo de ser considerada careta ou piegas. Precisamos recuar em alguns aspectos e avançar em outros, porquanto tenho a impressão de que estamos sendo incentivados a mascarar carências emocionais através da fama ou do poder efêmero e vale tudo nessa empreitada.
Creio que devemos começar uma campanha a favor da benevolência, do fortelecimento dos laços afetivos e do respeito ao ser humano.
Talvez seja a hora de lançarmos um slogan que promova o amor e não a curtição ou poder.
E para que Elisa descanse em paz eu rezo para que o seu filho tenha um destino de mais amor do que o seu.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Minha Língua.


Originou-se no Lácio, refez-se na Península Ibérica e tem o romance em sua árvore genealógica. É a língua portuguesa que ganhou malemolência e ritmo novo ao desembarcar em terras tropicais.
A geografia física e humana abrasileirou a língua de Camões que é visceralmente sertaneja nas veredas de Guimarães Rosa.
Bebendo café, água de coco ou chimarrão nos entendemos em português, com falares próprios que não nos separa; ao contrário, nos une em nossas peculiaridades.
Bendita herança lusitana! Não comungo com os que acreditam que a língua nos isola. O idioma nos faz únicos no continente, mas não nos separa dos vizinhos. Com boa vontade ou com jeitinho nos comunicamos em "portunhol".
Não sou boa em outra língua. A língua portuguesa é minha ferramenta de expressão: Penso, falo, escrevo e sinto em português.
Não trato com reverência esse meu idioma. Nossa convivência é de muita intimidade e talvez por esse motivo, às vezes, peque contra ela. Mas é pecado afetuoso e, portanto perdoável.
Desde que aqui desembarcou a língua portuguesa associou-se aos idiomas nativos e aos outros que posteriormente vieram para cá. Continua incorporando expressões estrangeiras, porém sem perder em nenhum momento a identidade.
Gosto que seja assim: livre de amarras e solta para novas associações. Quero-a com sotaques diversos assinalando a origem de quem fala. Desejo-a livre para que eu sinta saudade ou banzo, conforme a mistura de emoções.